Acabei de ler o livro
Caim de José Saramago, um exercício que recomendo a todos os que pretendam falar sobre o assunto. É um livro divertido, quase cómico, inspirado, sem ser genial, nem especialmente original ou inquietante como outros livros do escritor. Confesso que resisti durante muito tempo a ler o prémio Nobel: acho Saramago irritante e arrogante, sem a graça de outras pessoas - e nomeadamente escritores - igualmente irritantes e arrogantes. Mas, desde que me decidi a lê-lo, tornei-me fã dos seus livros. Gosto do estilo, da musicalidade da sua escrita e, sobretudo da forma como desafia a nossa consciência e a maneira como pensamos o mundo e a sociedade. Ou seja, a minha opinião acerca dele é tão original como a dos seus outros leitores.
Neste seu mais recente livro, Saramago retoma um tema bíblico, a lembrar Cecil B. DeMille, que dizia qualquer coisa como «dêem-me uma página da bíblia que a transformo num filme». Desta vez, o tema é o Antigo Testamento, o que me parece ser bater num cavalo morto.
Depois da expulsão dos pais do Jardim do Éden e do triste episódio em que acaba por matar o irmão, Caim lança-se numa viagem por várias passagens bíblicas, crescendo, com cada uma, a sua indignação por aquele Deus (a que Saramago dá a letra minúscula) mau, invejoso, vingativo, pequeno-burguês. A indignação vai sendo substituída pelo ódio e tudo isto culmina - não vou contar o fim - num duelo entre o criado e o criador, o Homem e Deus. O desfecho do livro é original e, mais uma vez, quase cómico. Das cento e oitenta páginas, sobressaiu-me uma frase que, aliás, foi escolhida para resumir a obra numa das orelhas: «A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele». Nada a obstar.
Nada? Pois, afinal há mais. Desde o dia da sua publicação - e antes, portanto, que mais do que uma mão-cheia de pessoas o pudesse ter lido - que não se fala noutra coisa que na «polémica», no «escândalo», e por aí fora. Ou seja, neste tal período em que não acontece nada, em que ainda não se formou o governo e em que atentados bombistas no Paquistão ou a segunda volta das eleições no Afeganimesmo fazem com que se mude de canal, a comunicação social salta de Herodes para Pilatos, aqui no caso de Maitê Proença para Saramago, em busca de mais qualquer coisa para encher uns chouriços.
Explico: no momento em que estalou a polémica, a noite do lançamento, andava toda a gente a falar de um livro que não podia ter lido (crítica que curiosamente fazem a Saramago em relação à Bíblia). Logo as televisões - e no dia seguinte, os jornais - falavam de polémicas, entrevistando qualquer pessoa que se dispusesse a falar no assunto. Claro que toda a gente tem opinião, mesmo acerca de um livro que não leu. Portugal - o mundo? - está cheio de gente opinativa e voluntariosa. Por isso é que escrevo um blogue. Toda a gente tem sempre algo a dizer, mormente mal. Leiam-se os comentários que enchem qualquer notícia publicada nos
sites dos jornais - qualquer notícia mesmo. Ouçam-se e vejam-se os programas na televisão e nas rádios em que se dá voz ao cidadão. Tome-se a proverbial bica de manhã no café da esquina. Enfim, toda a gente acha sempre qualquer coisa. Que não há direito, por exemplo.
Em especial, ir perguntar qualquer coisa a um representante - oficial ou não (e o que será isso?) - da Igreja Católica é sempre uma festa. Suponho que seja porque o seu tempo de antena é cada vez mais reduzido, quer nas televisões, rádios e jornais, como
in loco nos bancos das igrejas. Com as devidas excepções, que confirmam quase sempre a regra, ser católico hoje em dia é sinónimo de ser ignorante, serôdio, possidónio e todos os outros insultos que versem sobre estes temas. É ser contra todos os progressos sociais e individuais do último século. É ser pequenino, reduzido e redutor. É continuar a tentar impor valores e éticas por força de lei e é, pasme-se, achar que se pode ainda (na qualidade estrita de católico, bem entendido) comentar um livro ou um escritor em 2009. Não pode.
Não pode mesmo. A vivência individual da fé nas sociedades do presente pressupõe uma clara separação entre aquilo que é a espiritualidade e aquilo que são os valores sociais. Explico melhor: tomemos o caso do aborto. Ser católico do século XXI é acreditar que o aborto é contrário a um conjunto de valores assentes no próprio conceito de Vida. E o que fazer com isso? Primeiro que tudo, não praticar o aborto e depois, convencer os demais (chama-se evangelizar) a não o praticar, com a argumentação própria da nossa fé. O que não fazer com isso? Impor ao resto da sociedade, que é ou pode ser laica, através de leis, um código de conduta que escolheram para si. No caso específico, os referendos mostraram - dou de barato que de forma pouco explícita - que a Igreja e a sociedade não estavam coincidentes. A tudo mais se deveria aplicar esta lógica, este «a César o que é de César e o resto já sabem».
Agora a livros? A quadros? A filmes? A peças de teatro? O que têm a fazer é passar ao lado, fingir que nem viram.
Cada católico tem, obviamente, direito a achar o que quer - e a dizer o que quer - dos livros do Saramago. O porta-voz da Conferência Episcopal
, Manuel Morujão, não tem. A sua opinião, em princípio, vincula a da Igreja. E a Igreja que se meta nos seus assuntos e nos deixe a nós os livros que lemos. Limite-se a cumprir a sua missão que é a de difundir a mensagem de Cristo. Bem fez o papa Bento XVI que já disse, ou mandou dizer, que não se vai meter no assunto.
Esclareço que sou cristão, já fui católico. Cansei-me de toda a complicada contabilidade do que se pode e deve dizer e do que não se pode e não se deve fazer. A instituição Igreja parece-me apresentar Deus como um grande Sr. Costa da Contabilidade, com um caderninho para anotar os pecados, ou se nos ajoelhamos perante o Santíssimo ou se dizemos merda e Nossa Senhora na mesma frase. Deus, na jubilosa esperança que tenho de que exista, é certamente muito mais que isso. E fartei-me desta gente que não consegue imaginar o demiurgo diferente do chefe lá da repartição. Mas não costumo morder a Igreja. Têm o mérito de (já) não obrigarem ninguém a ir à missa e só acredita quem quer. Deixo-os lá na vida deles, conquanto me deixem a mim na minha. E, quando não deixam, quando saem furiosos das sacristias para comentar livros, referendos e o diabo a quatro (salvo seja!), fico cheio de vontade de achar que deviam ser proibidas, estas coisas das religiões. Um dia, espero, irão tornar-se obsoletas, extemporâneas, fósseis, e desaparecerão da face da Terra (como os partidos comunistas tão queridos ao escritor em questão). E deixarão o Homem verdadeiramente livre para viver a sua vida e a sua relação com Deus, se quiser. Mas pode ser um processo longo, tão demorado como a eliminação da pobreza e da ignorância nas regiões do mundo onde as religiões têm maior implantação. Ou pode ser que seja bastante mais rápido, se um dia nos fartarmos todos do mal e do sofrimento que estes representantes
soi-disant dos Deuses têm causado um pouco por todo o lado - que nenhuma religião do mundo lave as suas mãos.
Portanto:
1.
A comunicação social deve repensar esta sua tendência para criar as próprias notícias e que depois explora até sangrar por todos os orifícios. Os editoriais, as entrevistas, os directos, as conferências de imprensa, tudo de uma polémica que ela própria criou. É quase substituir-se a Deus. Não há ninguém na Igreja que deite mão a isto?
2.
Todos os que queiram falar do livro, que o leiam. É pequenino e tudo. A sério.
3.
José Saramago, ao expor e denunciar o Antigo Testamento, está a contar-nos uma história que já sabíamos há dois mil anos, mais coisa, menos coisa. Claro que Deus é mau e vicioso - isso já nos tinha mostrado Cristo, a sua versão mais
light, mais humana, mais Obama, que nos deu um Mandamento Novo e que nos disse, por meias palavras, que podíamos passar a usar o Antigo Testamento de calço para uma mesa (muito) desengonçada. Pessoalmente, até acho mais graça ao Deus do AT - como os meus amigos judeus - aquele Deus que parece que acabou de acordar de uma sesta com o barulho de uma retro-escavadora e ainda não bebeu café nem tem cigarros em casa e tem a cara cheia de borbulhas e logo hoje que ia jantar com uma gaja lá do escritório. Mas esse Deus, caro José, já não se usa nada nem nenhum católico se lembra muitas vezes que existe. (Os judeus que escrevam o que entenderem nos seus blogues).
4. Seria bom que
os católicos fossem os primeiros a exigir da sua Igreja que se dedicasse à sua orientação espiritual e deixasse a dos que não são católicos. Que é para isso que (eles) lhe pagam. O papa João Paulo II explicou ao mundo que o cristianismo era, no fundo, uma nova proposta de vida, assente em valores próprios e, acima de tudo, no respeito pela particularidade do ser humano. Foi mais longe e chegou a sugerir que talvez pudéssemos escolher partes daquela proposta para nos guiar a vida espiritual. Fez o que pode e o que o deixou o peso de dois mil anos de tradição. E é um exemplo. Quereis ser mais papistas que o papa?
Ideias para uma teoria da conspiração amanhã, num táxi: «Isto deve ser é coisa dos comunas, para vender mais livros!»Tenho a sorte de ter alguns amigos que rezam por mim, e pelos meus pecados e por estas coisas que digo. Sempre me garanto, não vá o diabo tecê-las.
Pronto, a minha sugestão é que leiam o livro, que é bem divertido, e que seja o que Deus quiser.